Artigos e opinião
Presenciando a estupidez humana, entretanto, nem tudo está perdido
Certo dia, ao entardecer, um movimento estranho surgia de cima da ladeira e Malaquias ouviu um grito de pavor e um estampido de arma de fogo. Sentiu-se trêmulo, pois num setor considerado de relativo sossego social, um caso como aquele só podia resultar de uma tragédia.
– Meu Deus, o que foi que aconteceu? Estão matando alguém aí do lado, Malaquias! – gritava atordoada dona Zefina, que corria apavorada vinda da cozinha com um cheiro forte de alho nas mãos.
Malaquias, que pulara do sofá e dirigia-se para o corredor da casa que dava pra rua, olhou dona Zefina com ar de que é um homem de fibra e exclamou:
– Não sei dona Zefina, mas como se trata de barulho de tiro, é melhor a gente ter cautela, pois aqui, apesar de ser um bairro seguro, você sabe como é que tá essa humanidade, é violência em toda parte. Vamos ficar aqui perto da janela da rua e olhar com cuidado. Pode haver mais tiros e não quero que sobre pra gente.
Enquanto abre cautelosamente um dos lados da janela, procurando se esconder na parte que ficara fechada, Malaquias e dona Zefina escutam outro grito, só que agora a sensação parecia vir de algo que demonstrava controle da situação, pois o que eles ouviram foi isso:
– Pare aí soldado! Pare aí! Vamos, vamos solte o garoto, os dois já estão detidos, – Pare aí soldado, estou ordenando,pare aí soldado! – nesse instante o sargento comandante da patrulha correu e interrompeu a ação iminente do soldado com um chute no seu braço esquerdo, o qual segurava uma pistola calibre 380, de uso próprio e que sempre ostentava poder carregar como puro defensor da ordem pública. (Três dias antes, este soldado havia mostrado aos colegas de farda, quando ainda no vestiário da corporação, sacou a arma de dentro da mochila e apontou para um alvo no vazio e depois comentou com colegas ao lado “…só imagino estourando a cabeça de um malandro safado que eu encontrar por aí”).
Malaquias sentiu que a situação pior já passara e resolveu abrir a outra parte da janela que se situava no lado lateral da sala de estar, aquela que oferecia melhor visão para o lugar onde estava acontecendo o inesperado transtorno social. No instante que abriu a janela, viu o sargento e mais outro soldado, que observava a dois metros de distância, imóvel, mas com um revolver calibre trinta e oito em punho, bem lateral do muro de sua casa, a mais ou menos 15 metros, um terreno baldio, indicado com uma placa que dizia: “Não jogue lixo: futuras instalações da prefeitura”. A situação foi ficando mais tensa, pois o comandante gritava com o soldado, que estava acuado, segurando o braço esquerdo e olhando a situação com ar de insegurança.
– O que está acontecendo com você? Os garotos estão detidos, olhe bem eles, estão mais apavorados que susto de aparição do além em frente do cemitério a meia noite. Vamos soldado, me dê a sua arma você está detido por uso abusivo de violência em meninos de menor. – Você, dirigiu-se para o cabo que observava meio constrangido a situação, acompanhe o soldado até o carro e o vigie, enquanto vou chamar outra viatura para o encaminhamento desses adolescentes para a instituição Casa do Menor.
Os dois adolescentes estavam bem assustados, um deles com a expressão de morte nos olhos, resultado da coronhada que recebeu acompanhada com o barulho ensurdecedor do tiro ao pé do ouvido. Enquanto o cabo acompanhava o soldado infrator, o sargento ainda dirigiu-lhe a palavra com ar de autoridade. Forçando a respiração e falando grosso, disse:
– Se prepara que a Corregedoria militar pode enquadrá-lo por crime de tortura, tomando a Lei 9.455/97 que tipifica os atos de tortura e formas de tratamento desumanos e degradantes. Naquele instante, o sargento se volta para os adolescentes, aproveitando a chegada da segunda viatura, e expressou seu descontentamento com as atitudes criminosas deles, enquanto, depois de uma revista meticulosa e de uma olhada atenciosa para com o adolescente que havia levado a coronhada, disse:
– Chegando lá, diga para os agentes que precisa de uma consulta médica, pois o tiro pode ter afetado seus tímpanos e você pode vir a ter problemas futuro com esta parte do ouvido.
Os Três militares que chegavam estranharam a situação com fato do soldado Silveirinha, como era bem mais conhecido, está sentado e acuado no banco traseiro do carro policial em que trabalhava.
– Isso mesmo que você está pensando, vou procurar enquadrá-lo por uso abusivo de força, a meu ver uma atitude insana, principalmente com garotos de menor. Você! – Esticou o braço em direção ao cabo da segunda viatura – Encaminhe esses garotos para instituição e ative o Conselho Tutelar. Vou com o Jobson encaminhar o soldado Silveirinha para o comando Geral e tomar as providências para que este exemplo não venha mais acontecer, principalmente no meu distrito militar.
Enquanto as viaturas tomavam seus respectivos caminhos, Malaquias olhou com estranha expressão em direção a dona Zefina, a qual exclamou.
– Você num acha que o sargento exagerou com o soldado, Malaquias, acho que não precisava disso tudo, afinal, apesar de que não concordo com o tiro, mas esses meninos às vezes precisam de uma lição, lembro que não faz um mês que dona Augusto foi assaltada quando foi pegar a aposentadoria, além deles tomarem a bolsa com dinheiro e o celular, eles ainda empurram a coitada, que ficou bem machucada, segundo me disse.
– Não é bem assim, dona Zefina, as leis precisam ser respeitadas, e o Sargento mesmo disse que a atitude do soldado foi desrespeitosa, infligindo à lei e, portanto, precisava ser contido para servir como exemplo de cidadania. Todos, não importam se é civil ou militar, se é soldado ou qualquer cidadão comum devem respeitar os direitos humanos. E as leis existem para isso, alertar a todos dos limites de nossas ações, quando se erra feio, é preciso se justificar perante o Estado. Os garotos erraram e tem que serem punidos com a lei. E a lei proíbe a tortura e os maus tratos, principalmente se vem de um representante da ordem pública. Não, ao contrário da senhora, acho que o sargento teve a hombridade e a honra para com seu serviço à população. Acho que ele foi um verdadeiro representante da cidadania.
– Há, lá vem você com esses discursos difíceis pra mim, vou é voltar lá pro meu serviço e terminar os temperos pra janta, pois já são mais de quatro da tarde. Esse negócio de lei, de hombridade, isso eu deixo pra tu que é cheio de frescura com essa tal de intelectualidade. Eu sou é do serviço pesado, gosto é de minha cozinha.
Malaquias não retornou mais aquele papo com dona Zefina, vendo a desaparece por entre o corredor que dava pra o quintal da Casa, sorriu um pouco intimamente com a atitude da senhora que cuidava dele e depois olhou mais uma vez pela janela, viu alguns conhecidos seus no outro lado da rua, posou seus braços sobre a mureta de madeira e pensou em voz alta: Puxa vida, às vezes a gente tem a má sorte de presenciar situações tão adversas, mas acho que esta foi uma das mais incríveis que já vi – em sua memória a expressão do sargento, impedindo que um possível assassinato contribuísse com a estatística na mídia policial, veio à tona – Realmente, um bom exemplo pra gente de que vale à pena acreditar na cidadania, e a atitude daquele sargento vai ficar na minha memória! Concluiu.

